Trejeitos de Pastor

O rabino Nilton Bonder fez uma leitura atualíssima do texto bíblico que é chamado de a grande síntese: “Amar a Deus sobre todas as coisas e ao próximo como a si mesmo”. Considerando o espírito do nosso tempo, os indivíduos são reduzidos a fregueses; agem como consumidores, que pagam e saem de perto. Na vida confundida com o mercado, o “próximo” nada mais é que o próximo da fila ou a próxima conquista. Não olhamos para quem está aqui. Nossas lentes são, preferencialmente, para enxergar objetos que estão além. É uma miopia aguda que considera miúdo quem está perto – como se preferíssemos os que estão longe, aqueles que ainda estão por vir.

Em uma conversa amena com alunos antes da aula, elogiei o artigo do rabino, que foi publicado na seção Opinião do Jornal O Globo no dia 13 de abril de 2014. Fui surpreendido com a fala de um rapaz: “Não gosto dele!” Eu quis entender a razão da rejeição. Considerando a pluralidade do espaço secular no qual me encontrava, o tom negativo poderia vir à linguagem religiosa ou a figura de um rabino, puro e simplesmente.

Mas o intrigante ainda estava por vir: “Não gosto dele porque não é religioso.” O autor da fala, meu aluno, é judeu. Fui embora matutando. A crítica do rapaz ortodoxo caiu como um elogio. Nos meus devaneios no ônibus, a identificação foi inevitável. Guardadas as devidas diferenças, Jesus foi um rabi olhado com desconfiança pela comunidade judaica do seu tempo porque não era o tipo religioso.

A religiosidade nos oferece papéis sociais rígidos acerca de como devemos observar os costumes. Precisamos aprender a conviver com o fato: alguns não gostam de nós porque não somos o tipo religioso. A questão não é pessoal, mas meramente institucional.

Há uma garotada querendo ser pastor com fortes crises. O que os assusta? A missão? A radicalidade do discipulado? Não, nada disso. O que os demovem da ideia ou da vocação são os estereótipos. Quem estaria disponível a dedicar sua vida para manter de pé a instituição religiosa? Antes que alguém apele, necessário é lembrar que Jesus Cristo viveu e morreu para salvar o mundo, e não os empreendimentos religiosos.

Servir à igreja é mais do que observar ritos, horários e costumes. Os estereótipos pastorais vigentes são desumanos. E que se apresente o próximo da fila.

Os seminários denominacionais oficiais não ajudam muito. Qualidade acadêmica duvidosa, mas, convenhamos, diploma com o carimbo do Ministério da Educação. As formas estão prontas: campanha de marketing para atrair o “próximo” vocacionado ou freguês. Mas um fosso abissal entre igreja e instituições de ensino.

Quando deitamos nos braços da religião, nos esquecemos do nosso modelo. Quando reclamamos a justiça própria, rimos da graça. Quando notamos com facilidade o cisco nos olhos do outro, tapamos os nossos para ver no quê nos transformamos. Certamente, uma das críticas mais aguda do protestantismo ao catolicismo foi à questão do clero. Gente de carne e osso que se entrega para servir a Deus e se descobre lustrando o mobiliário da pompa religiosa. O serviço cristão reduzido aos jogos de poder nos labirintos eclesiásticos. Será que existe algum grupo denominacional evangélico em condições de sustentar essa crítica?

Sabemos que o termo “evangélico” abarca, no Brasil, milhares e milhares de igrejas. O curioso é que o clericalismo é comum a todas. Os papéis sociais são construções humanas, datadas e moldáveis. Não ignoro o fato de que somos seres que sobrevivem na cultura. Expectativas ao nosso respeito sempre existirão. O prejuízo grande é quando chamamos de sagrado o que é meramente cultural. A construção da religião do clero é contingência social – e chamar isso de Evangelho é uma arbitrariedade.

Que os novatos que estão se apresentando às igrejas para servi-las não sejam constrangidos à circuncisão. As credenciais para ser pastor ou pastora não podem ser reduzidas a marcas externas ou trejeitos religiosos. Deixa a gurizada se expressar, Igreja!

Valdemar Figueredo
Editor do Instituto Mosaico, Pesquisador da USP (pós-doc), cientista social e pastor
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