Um Homem Perplexo

RESENHA

MIRANDA, Mario de França. Um homem perplexoo cristão na atual sociedade. São Paulo: Edições Loyola, 1989.

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Pe. Mario de França Miranda

A questão não é nova. Um livro que nasce de um certo mal-estar. Grande evasão dos cristãos que abandonam a Igreja. Sobram inferências precipitadas sobre o fenômeno que tendem a justificar os indivíduos e a culpar a Igreja como se ela fosse diretamente responsável pela perda de adesão significativa. Nessa visão um tanto maniqueísta, numa época hedonista, rejeita-se a Igreja pelo tanto que supostamente ela proclama uma ética anacrônica de costumes supostamente ultrapassados. As liturgias servem para satisfação da memória afetiva, o que não representa necessariamente em princípios para a condução da vida. Nada mais arbitrário do que a generalização superficial: “Os que se afastam da Igreja não querem compromisso com Deus”.

Convenhamos, nas nossas experiências não são poucos os afastados da Igreja que demonstram larga abertura para Deus. A crise comunitária não chega a ser uma crise de fé. Mario de França Miranda, embora não desconheça o debate teórico em torno desta questão, opta por escrever um livro que nasce da perplexidade, mas que se realiza enquanto “enfoque eminentemente pastoral”.

Ser cristão numa sociedade pluralista. Não custa frisar que o ser cristão tem a ver em acreditar em um conteúdo específico. Mas a vivência da fé ocorre em situações históricas concretas. Perspectivas sociais influenciam na forma em que essa fé é acolhida e como ela se manifesta em situações geograficamente demarcadas e cronologicamente contextualizadas. Portanto, indagar sobre o ser cristão numa sociedade pluralista é procurar pelos contornos sociais e históricos em que a fé cristã é entendida e vivida.

Muitos confundem a mensagem do evangelho com os moldes culturais cristãos. Com a perda do monopólio da cultura e dos processos simbólicos ocidentais que dão sentido à vida, alguns cristãos confundem nostalgia das tradições cristãs com supostas crises de fé. Estamos vivendo numa sociedade pluralista em que o universo simbólico cristão é um entre outros.

Secularização não é necessariamente perda de fé, mas perda do monopólio da razão e das estruturas sociais por parte da Igreja. A quem isso pode ofender?

O universo simbólico tende a ser pluralista e não mais unívoco. O homem moderno é por definição emancipado. A quem isso pode perturbar?

Na sociedade em que o fator econômico capitalista professa a sua fé no mito do progresso em que as identidades dos indivíduos são fortemente determinadas seja pelo que eles produzem na indústria ou pelo que consomem no mercado, a pergunta é por que o magistério eclesiástico da Igreja Católica não enfrenta de frente seu próprio anacronismo.

Boa parte dos católicos não compreendem, muito menos seguem, boa parte dos pontos doutrinários e éticos recomendados pelo magistério. Existe uma notória lacuna entre cúpulas eclesiásticas e os fiéis nas suas realidades cotidianas concretas.

Para não ficar restrito às críticas ou para não ficar paralisado pela perplexidade, Mario de França Miranda indica três direções que a seu ver são necessárias para a pastoral urbana.

  • A experiência de Deus

Parece óbvio, mas o que respalda a vivência cristã no contexto pluralista continua sendo a experiência com Deus. A experiência pessoal com Deus é o marco inicial da vida cristã. Mais do que um evento místico seminal, estanque, isolado, a experiência com Deus é que dá sentido à vida e continua acontecendo.

  • A formação de grupos de vivência

A vivência cristã acontece no dia a dia e não nas descontinuidades dos cultos institucionalizados nos templos. Dar sentido à vida é tornar o ser cristão algo ligado ao cotidiano. Emergem desses grupos de fé o estímulo mútuo e a ajuda terapêutica. A fé é algo que se compartilha e melhor quando isso ocorre de forma simples.

  • O voltar-se para os pobres

No contexto da atual sociedade capitalista, individualista, hedonista, sob o manto do mito do progresso, a produção da pobreza é estrutural. Portanto, é imprescindível que a pastoral urbana assuma o compromisso com os pobres, não como item de obrigação religiosa, não como quem cumpre um protocolo, mas como critério decisivo da vivência cristã. A caridade, o amor encarnado não estão na ordem da estratégia, mas na essência da revelação do caráter de Deus. Amar ao pobre e agir concretamente ao seu favor é o que chamamos de testemunho cristão.

A pastoral não ocorre apenas a partir das ideias que circulam internamente na igreja, mas também em resposta ao contexto sociocultural de uma geração. Entre outras possíveis caracterizações do sujeito moderno, ele é marcado pelas oscilações e forte individualismo. As estruturas sociais na lógica da produção técnica-científica são constantemente transformadas. No sistema social instável, emanciparam-se as esferas política, científica e econômica. Por fim, o próprio homem emancipou-se. O autor aborda o espírito de época a partir da concepção do Louis Dumont sobre o individualismo enquanto a marca mais forte da modernidade.

Eis que surge a pergunta: como se manifesta a vivência cristã neste contexto cultural de indivíduos e instituições emancipados? O Concílio Vaticano II foi a tentativa de responder a essa pergunta. O desafio seria dialogar com o mundo moderno. Prévio reconhecimento que em plena modernidade a Igreja e os teólogos tendiam majoritariamente a se portarem como medievais.

Encaminhemos a pergunta anterior em outro molde: como a igreja fala de ética para uma sociedade extremamente individualista e hedonista? Parece a princípio que a tendência é que cada um busque viver a fé cristã ao seu modo. O princípio do bem-estar pessoal se sobreporia ao princípio da responsabilidade em assumir uma missão coletiva.

E eis que surge uma aparente contradição perante o quadro pintado de esgotamento dos sentidos religiosos no mundo moderno emancipado: a volta do sagrado. Muito já foi dito sobre este fenômeno pelos sociólogos e antropólogos, mas Miranda se antecipa para justificar que sua análise é teológica/pastoral. Importa lembrar que este livro foi publicado no ano de 1989. Com o esclarecimento temporal evitamos cobrar do autor elementos do debate que quando ele escreveu simplesmente ainda não haviam se manifestado. Para evitarmos repetições enfadonhas, convém lembrar que a alegada “volta do sagrado” não representou, em nenhuma hipótese, supressão do processo emancipatório da modernidade. Fala-se de um sagrado que não é o mesmo fenômeno dos séculos que compreenderam o período medieval. E mesmo o aspecto eclesiástico, a igreja do século XX não é a mesma do século XV.

Considerando que o homem é um ser de necessidades, considerando que o indivíduo moderno vive desintegrado devido ao individualismo, ao pluralismo, ao utilitarismo e à instabilidade típica da produção industrial que estimula o consumo na proporção em que nega a satisfação, o retorno do sagrado tem a ver sim com “asilos afetivos” e “oásis de sentidos”. Em termos teológicos e positivos, Miranda delimita o conceito de sagrado. Para ele, a soteriologia é por definição integrada. Sagrado salvífico é o conceito mais importe de todo o livro. Com ele Miranda explica a sua concepção do sagrado, sua concepção de salvação transformadora. Diferente da concepção espiritualista, o autor acredita que

A salvação vai dirigir ao homem todo e o sagrado cristão, por ser salvífico, tem necessariamente uma dimensão psicológica, econômica, sociológica, cultural, etc. O cristão não se opõe ao humano, mas o assume, revelando-o a si mesmo e libertando suas virtualidades mais profundas. (MIRANDA, 1989, p. 51).

Neste sentido, a volta do sagrado não seria apenas carências dos indivíduos desintegrados ou nostalgia de indivíduos solitários na sociedade moderna, a volta do sagrado seria a reconciliação do homem com Deus através de Jesus. No que o indivíduo encontra a salvação como algo real, ele se integra e consegue agir eticamente para além dos condicionamentos do mundo moderno. A salvação não cumpre mera função terapêutica com efeitos breves de narcóticos religiosos. O sagrado ao qual Miranda se refere não é qualquer um. Ele o define objetivamente desde as suas origens até os seus efeitos, sagrado salvífico.

 

Valdemar Figueredo
Editor do Instituto Mosaico, Pesquisador da USP (pós-doc), cientista social e pastor
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