Para os dias em que “Deus nos tira a poesia”

Adélia Prado iniciou o poema “Paixão” com as seguintes palavras: De vez em quando Deus me tira a poesia. Olho pedra, vejo pedra mesmo.

Rubem Alves alegou que: A gente fica poeta quando olha para uma coisa e vê outra. 

Então, o que fazer quando a poesia nos é retirada? Quando olhamos para a pedra, ou para qualquer outro objeto e não conseguimos ver nada além dele mesmo?

Há dias em que, sem encontrar explicação, já amanhecemos do avesso. Não há poesia. É quando a piada perde a graça, as cores do arco-íris se transformam em cinzas, todo brilho se ofusca, nada faz sentido. Desses dias, nem mesmo os poetas são poupados.

Voltemos à palavra poesia, derivada do grego poíesis, que significa: ato de criar, inventar, fazer, produzir… Sejamos francos: a vida em si é desprovida de sentido. Não há sentido, pois nós somos os responsáveis por atribuir sentido à vida.

A esfera humana que trata do sentido da vida é a espiritualidade. Essa capacidade criativa acontece no espírito humano, dimensão que nos propicia elevação, transcendência e autotranscendência.

Esse assunto me faz lembrar de Viktor Frankl, neuropsiquiatria austríaco, sobrevivente dos campos de concentração, desenvolvedor de uma ciência do sentido conhecida como Logoterapia. Para Frankl, quando não encontramos uma boa reposta para a pergunta sobre o sentido da vida, estamos propensos ao adoecimento psíquico.

Mas, o que fazer quando os dias sem poesia se amontoam e formam uma sequência longa de escassez de beleza e inspiração?

Não há resposta pronta. Apresento apenas algumas sugestões para lidar com a ausência de sentido a partir da tridimensionalidade do tempo:

Quanto ao passado, nos cabe trazer à memória aquilo que pode avivar a esperança. Evocar vivências significativas e marcantes capazes revelar pelo que vale a pena viver.

No presente, importa resistir e abrir-se a possibilidade de extrair algum aprendizado, qualquer que seja, mantendo-se fiel aos seus próprios valores.

Por fim, podemos olhar para o futuro com uma atitude positiva, navegando pela transitoriedade da vida, abrindo-se para o inédito. Quando a poesia retornar, virá acompanhada de novo cheiro, novo sabor e nova paisagem.

Os dias sem poesia são perigosos, mas necessários. Eu até gostaria que fossem menos frequentes, mas é justamente por causa deles que a poesia se torna tão preciosa e imprescindível.

Allan Felipe Freitas

Psicólogo clínico, mestre e doutor em psicologia social (UERJ), professor universitário e pesquisador de temas ligados à psicoterapia, psicologia, religião e espiritualidade.

OPINIÃO
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