Epifania Assombrosa: Cuidado com o Cão!

Correr livre pelas ruas arborizadas do Grajaú. Em plena região metropolitana do Rio de Janeiro.

A moça que caminhava subiu na calçada e sem cerimônia pegou uma goiaba no pé.

Micos malabaristas saem da mata da reserva e atravessam a rua pelos fios para comer mangas.

Idosos caminham sobre o chão forrado com folhas de amendoeiras.

Crianças sonolentas esperam na porta de casa o transporte escolar.

Zé Geraldo equilibra na sua bicicleta o cesto de pães. Os fregueses de sempre o esperam. Qualquer oscilação na cor dos pães ou no horário da sua chegada é motivo para ranzinzas o ameaçarem com adesão à modernidade da padaria da praça.

Balé dos pais expondo os seus bebes aos primeiros raios de sol do dia. Nítido que aquela mãe de primeira viagem não dormiu nada essa noite. Extenuada mexe a sua cria, sacode o menino, tentando ficar desperta para o novo dia. Eh, mãe! Cadê tu pai?

Na profusão de imagens, rostos, beleza, manhã e humanidade, tropeçamos no sentido de epifania.

Descida a ladeira. Quarta esquina à direita. Seguir.

Na varanda da bela casa abandonada, a solidão estampada na cara dele.

Evita o sol. Não responde aos acenos. Finge que não vê. Tristeza na sombra.

Olhos apagados. Musculatura exausta.

Todas as portas e janelas do sobrado trancadas. Grossas correntes.

Quintal matagal e varanda sem flores. Olhar fixo em coisa alguma.

Não emite sons. Nada de choro doído, grito revoltado, rosnado ameaçador ou grunhidos desconexos. Silêncio profundamente triste. Solidão desconcertante.

Perdeu a voz depois de muito pedir ajuda? Emudeceu pelo processo de condicionamento frustrante? Silenciou resignado na condição de peça decorativa de uma casa em ruínas guardada como investimento?

Inevitável perguntar pelos donos da casa: como podem submeter um ser ao abandono absoluto em troca da segurança da sua propriedade privada? Trata-se de uma vida desperdiçada. A ironia assombrosa registrada na placa afixada na entrada principal: cuidado com o cão!

O que assusta é a pessoa ausente capaz de manter um cachorro nessas condições. Se procede assim com o animal, imagina do que é capaz em relação ao semelhante que vive perto?

A manhã no Grajaú teria sido perfeita se os cachorros vagabundos que acompanham todos os dias os catadores de lixo reciclável libertassem o irmão oprimido. Seria lindo ver o labrador voltar a sorrir no meio dos vira-latas andarilhos. Experimentar o acolhimento singelo de uma comunidade que não vive em função de propriedades privadas trancadas nem de fidelidade canina a proprietários ausentes.

 

Valdemar Figueredo
Editor do Instituto Mosaico, Pesquisador da USP (pós-doc), cientista social e pastor
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