O APAGAMENTO HISTÓRICO E A LUTA POR RECONHECIMENTO: Um Paralelo entre o Marco Temporal no Brasil e a Lei de Ausência na Palestina

Ou ainda: por qual motivo temos que conhecer e considerar a situação da Palestina e sua relação com a nossa realidade.

A história do Brasil e da Palestina/Israel é permeada por narrativas que frequentemente excluem e apagam a presença e a contribuição dos povos indígenas e palestinos, respectivamente. O Marco Temporal no Brasil e a Lei de Ausência em Israel são exemplos de políticas que resultam no apagamento histórico, na violação de direitos e na tentativa de retirar das comunidades tradicionais as terras que ancestralmente ocupam.

Apagamento Histórico e Narrativas Dominantes

Tanto no Brasil quanto na Palestina, a história oficial se concentra em eventos que ocorreram depois da chegada dos colonizadores, inclusive é assim que comemoramos o “aniversário” do Brasil e do Estado de Israel, deixando de reconhecer histórias e culturas indígenas e palestinas anteriores. É fundamental entendermos a importância de reconhecer a existência pré-colonial dos povos indígenas no Brasil e a complexidade e diversidade de suas sociedades, caso contrário o que se tem é a repetição da história do colonizador e consequentemente o apagamento de qualquer narrativa indígena, original, ancestral dos povos que já habitavam esta terra muito antes da chegada dos europeus, as obras de Darcy Ribeiro e Manuela Carneiro da Cunha são algumas das interessantes e intrigantes perspectivas que podem nos auxiliar nisto. Da mesma forma, existe o apagamento da história e da identidade palestina com a instauração do Estado de Israel que foi criado em um território que já havia moradores, história, cultura e semelhantemente ao Brasil, com a diferença de quase 500 anos, foi habitado por uma população que não morava ali, e se apropriou da terra. É necessário desafiar as narrativas dominantes e reconhecer a presença ancestral desses povos na região.

É importante lembrar que o apagamento histórico não é feito somente através de disputa de narrativas, concretamente existe o apagamento de vidas, destruição de casas, sufocamento de história e de vozes. A história chamada de “independência de Israel” é conhecida pelos palestinos por Nakba que é catástrofe em árabe, em que pelo menos 700 mil palestinos foram expulsos de suas casas. No Brasil o massacre da população indígena é evidente se você considerar que aqui onde era território indígena, existem atualmente, segundo aponta dados de 2022, 1milhão e 700 mil indígenas, num país com mais de 210 milhões de habitantes.

Violação de Direitos e Luta por Reconhecimento

O Marco Temporal e a Lei de Ausência são exemplos de políticas que perpetuam a violação dos direitos dos povos originários, resultando em injustiças e desigualdades.

No Brasil, o Marco Temporal propõe que os povos indígenas só tenham direito às terras que estavam sob sua posse em 5 de outubro de 1988, ignorando assim sua história ancestral e suas reivindicações sobre terras tradicionais. Essa abordagem arbitrária perpetua as injustiças históricas decorrentes da colonização, negando aos indígenas aquilo que não é seu de fato e de direito. Além disso, essas comunidades enfrentam racismo e preconceito generalizados, que contribuem para sua marginalização e negação de direitos seja em educação, seja em saúde ou de forma geral.

Em Israel, a Lei de Ausência, promulgada em 1950, nega o direito de retorno aos palestinos deslocados durante a fundação do Estado de Israel em 1948. Sob essa lei, as propriedades palestinas foram consideradas “propriedades ausentes” e transferidas para o controle do Estado, perpetuando assim a apropriação de terras e a discriminação sistemática contra os palestinos. Além disso, os palestinos enfrentam restrições de movimento, desigualdades legais e falta de acesso a serviços básicos, sendo frequentemente estigmatizados como retrógrados.

Essas políticas e práticas discriminatórias, tanto no Brasil quanto na Palestina, refletem uma visão de inferioridade dos povos originários, considerando sempre os colonizadores como mais avançados, mais dignos e por que não dizer, até mesmo mais humanos, numa hierarquização racista e sistemática. A negação de direitos territoriais, o apagamento da história e a perpetuação de estereótipos raciais alimentam a marginalização e a injustiça social.

A análise de Darcy Ribeiro sobre a situação dos povos indígenas no Brasil evidencia a luta contínua por direitos territoriais, saúde, educação e respeito à sua diversidade cultural. Da mesma forma, as obras de Said e Pappe destacam a importância da luta palestina por autodeterminação, direito de retorno e igualdade de direitos dentro de Israel e nos territórios ocupados.

Concluo dizendo que o Marco Temporal no Brasil e a Lei de Ausência em Israel são expressões de políticas que negam a existência pré-colonial e ancestral dos povos, perpetuando o apagamento histórico, a violação de direitos e a tentativa de retirada de suas terras, seus direitos e sua existência.

As semelhanças são várias, não são só formais/legislativas, mas são reais, são concretas. Uma curiosidade é que ao mesmo tempo que este Estado colonizador se faz presente para garantir o apagamento histórico das narrativas, ele também se faz ausente propositadamente para assim, dar lugar à ilegalidades arbitrárias como os colonos ilegais israelenses e o garimpo ilegal no Brasil, que apesar de não serem oficialmente a mão do Estado colonizador em sua formalidade, garante a expansão do processo colonizatório que destrói, ocupa e mata os povos originários existentes numa ausência programática do Estado.

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Foto: Matheus Veloso

Manoel Botelho
Professor nas áreas de política e filosofia. Foi observador de Direitos Humanos nos Territórios Palestinos Ocupados e trabalhou com programas de saúde indígena na Amazônia.
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