Palestina Além das Manchetes

O cenário atual da Palestina (Gaza e Cisjordânia) e de Israel tem sido discutido frequentemente com distanciamento e, por muitas vezes, desinformação. Quero compartilhar uma história pessoal que vivi em fevereiro de 2016, na Cisjordânia, ou seja, Palestina e trazer a história pra próximo, pra perto.

Na Palestina, eu monitorava o acesso à educação de crianças palestinas, principalmente crianças entre 3 e 11 anos. Dentro do próprio território palestino, elas eram sujeitas à vistoria do exército israelense em dois pontos distantes apenas 150 metros um do outro. Lembrando que  se tratava de palestinos dentro de sua própria nação, Israel não deveria estar lá..

A situação era como se a Argentina estabelecesse pontos de checagem dentro do Brasil, e para ir à escola, você, seu irmão, seu filho, precisassem passar por esses do exército argentino, sendo você criança e eles soldados do exército Argentino muito bem armados.

Eu estava diante do CheckPoint 56, aguardando as crianças para apoiá-las na saída da escola. Enquanto aguardava, vi soldados furiosos tentando sair do CheckPoint, recentemente reestruturado com câmeras, armamento, grades, blindagens e roletas. Estavam com dificuldades para liberar os portões. Encostado num bloco de concreto: do jeito que estava, permaneci e aguardei, imaginando que questionariam algum palestino, como era comum.

Surpreendentemente, quatro soldados fortemente armados vieram na minha direção. (Um parêntese aqui: até então, eu não sabia que meu rosto tinha tantas feições palestinas.) Eu estava uniformizado com colete da organização, mas a jaqueta que usava tinha a mesma cor do colete, então ficava quase imperceptível.

Fui confundido como palestino pelos soldados de Israel, que vieram me prender sob a acusação de lançar pedras em algum local. – Pedras que, em 2022, Israel teve a audácia de citar na ONU como ataques terroristas (1), para justificar os assassinatos cometidos por Israel. – Quando eles perceberam que eu era um agente internacional, não era palestino, não me levaram preso, inclusive durante a discussão meu colega de trabalho sueco, loiro e de olhos azuis chegou,. reforçando a informação de que eu realmente era internacional.

Independentemente disso, nunca atirei pedras em lugar algum, mas palestinos são detidos por até 3 anos para verificar se eventualmente alguma pedra foi lançada, eles ficam presos “aguardando julgamento”. Esta cena (prisões aleatórias) não são incomuns, como abaixo, notem os soldados bem armados que queriam prender esta criança também sob acusação de ter lançado pedras.

Essa prática ocorre há mais de 70 anos, com prisões arbitrárias de palestinos, mas não só isso, invasões e demolições de casas, mortes, estupros, corte de eletricidade e água. Palestinos e palestinas têm suas vidas controladas, monitoradas e violentadas todos os dias há mais de 70 anos.

Há muita coisa não dita, e Gaza é conhecida como a maior prisão do mundo a céu aberto. Pois pessoas não criminosas, assim como eu, estão em um local que ela não tem liberdade, não tem água, não tem eletricidade e não podem sair de lá, estão presas. Sobre essas percepções não ditas sobre Gaza, tem um texto de 2021 que está bastante atual. (2)

Agora peço licença pra ser um pouco mais teórico sobre a leitura dos fatos. Paul Ricoeur diz que interpretar é adentrar o mundo do texto e projetar suas possibilidades conhecidas. Segundo ele, “O Mundo do Texto é um mundo que o próprio texto propõe e que pode ser habitado pelo leitor ou leitora para que ele ou ela projete seus possíveis mais próximos” (3). Se você nunca ouviu outra narrativa, não tem capacidade de interpretar os fatos de Gaza, é semelhante a você querer ler um texto em russo, sabendo apenas português. O argumento de “situação é complexa” é um subterfúgio narrativo para não criminalizar o estado de Israel e reduzir as atrocidades cometidas por ele.

Se ler o texto de 2021, tento mostrar uma narrativa não posta, não dita, não explícita. Notem que há a questão histórica do Brasil e do mundo ocidental, colonizado pelos cristãos, onde a palavra “Israel” é comum, mas “árabe”, “muçulmano” ou “Palestina” muitas vezes são ausentes.

Para além disso, quero dizer que, mesmo que não tenha “Palestina” no seu repertório, existe algo que existe na narrativa de qualquer um, que é o sofrimento humano. Mais de 3 mil crianças(4) já foram assassinadas, e mesmo sem a palavra “Palestina” no seu repertório, não existe leitura humana que não interprete isto como inaceitável, desumano e injusto.

Isso não justifica os crimes de guerra do Hamas, que fique claro que não existe defesa de crimes aqui, mas que também fique claro que Israel usou mais de 12 mil toneladas de explosivos e bombas em Gaza, mais que Hiroshima, uma média de 33 toneladas por quilômetro quadrado (5). Não é defesa, não é defesa, não é defesa!

O Hamas precisa ser responsabilizado de acordo com o que rege o direito internacional, contudo quem nunca é responsabilizado é Israel, Israel tem sido, literalmente a exceção à regra. Israel não responde pelos crimes que comete, enquanto possivelmente resoluções internacionais condenarão o Hamas.O desejo aqui é que TODOS sejam responsabilizados pelos crimes que cometeram.

Eu, pessoalmente, quase fui preso por esse estado terrorista que é Israel, e eu não era nem muçulmano, nem palestino, nem árabe, eu só parecia um.

Mesmo que você ache difícil identificar palestinos civis e terroristas, crianças jamais podem ser confundidas, JAMAIS. Eu vi, por diversas vezes, a generosidade de crianças palestinas com soldados e colonos palestinos, crianças só querem brincar, viver, crianças precisam VIVER. (6)

Não me venha com a justificativa de que o “Hamas esconde bombas em crianças”, seja sincero, você nem sabe o que é o Hamas, talvez você não saiba nem indicar no mapa onde é Gaza.

Mas eu acredito que você tem conhecimento que utilizar armas químicas é proibido (7) e que principalmente, CRIANÇAS MERECEM VIVER!!! Se você discorda que crianças não devem ser assassinadas, o que te falta é leitura humana!

Manoel Botelho
Professor nas áreas de política e filosofia. Foi observador de Direitos Humanos nos Territórios Palestinos Ocupados e trabalhou com programas de saúde indígena na Amazônia.
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