Ora por Mim, Mãinha!

Aeroporto de Recife. É madrugada. Se esperar o voo é inevitável, melhor tentar aproveitar o tempo. Enquanto a conexão não é chamada, paro de transitar nas lojas para bisbilhotar coisas supérfluas e dedico-me a espiar as pessoas em trânsito. O livro aberto no colo ajuda na figuração do sujeito distraído. Diversidade humana é algo que fascina, pelo tanto que surpreende. Quando achamos que já vimos de tudo, somos tomados pelo espanto. As pessoas vestem roupas convencionais, dizem o que delas se espera, comportam-se adequadamente — no entanto, são singulares, nada óbvias.

Na verdade, eu estava atento às pessoas que formavam um tipo de mosaico vivo. Uma família de quatro pessoas, meio desorientada, procura o portão de embarque. Pelo aspecto, é gente simples, daquelas que ficam intimidadas com a imponência de um aeroporto. Aparentam certa vergonha matuta, típica de quem não está acostumado a esse negócio de andar de avião. A mãe equilibra-se numa sandália plataforma altíssima. Tem a saia na altura das canelas e um coque na cabeça, aquele tipo clássico de senhora de círculo de oração da Assembleia de Deus das antigas.

Agarrada aos seus braços, uma menina de uns dez anos de idade parece muito assustada. A voz metálica da locutora anunciando os voos soa-lhe sinistra. Olhos arregalados, ela responde com expressões e gestos aos estímulos sobrepostos. Já o rapaz, certamente seu irmão mais velho, assume o posto de chefe da família naquela situação inusitada. A iniciativa de perguntar aos estranhos onde ficava o portão de embarque, depois de algumas tentativas de descobrir por si mesmo, coube a ele. Fazia o tipo protetor, que generosamente vai abrindo caminho.

No entanto, nenhum dos três embarcou. Pararam na porta de acesso. Somente o quarto membro da família viajaria. Um pouco mais novo do que o irmão, o rapaz tinha cabelos bem pretos, lisos, quase na cintura.

Negro e índio no mesmo tanto. Maquiado. Alto, de calça justa, uma bata bem comprida e tênis de canos longos, ele não passaria despercebido em nenhum lugar. Curiosos chegavam a parar para tentar entender melhor os sinais estampados naquela figura. Outros mais apressados faziam expressões de espanto e reprovação, reduzindo tudo a uma palavra: “Gay”.

Visivelmente emocionado, o rapaz beijou a irmãzinha e deu um longo e afetuoso abraço no irmão, que perto dele parecia baixinho. Adiou enquanto pôde a despedida da mãe, como se alguns segundos fizessem diferença para amenizar a dor da partida. Quando se dirigiu a ela já estavam chorando de soluçar. Com sotaque carregado de pernambucano, o filho “pródigo” quebra o silêncio:

“Mãinha, ora por mim. De verdade, mãinha, ora por mim”.

Ele então parte, olhando para trás até sumir no corredor. Agora, estava definitivamente só.

Claro que aquela mãe atendeu ao pedido de bênção, independentemente do lugar para onde escolheu seguir o menino. Os olhares cúmplices dos irmãos, cheios de amor, e a carga emocional do momento deixam claro que não se tratava de uma simples viagem de férias. Para onde teria ido o rapaz? E iria fazer o quê naquele destino? Não pude saber. Só era óbvio que a distância que alonga o tempo e o espaço seria cruel para aquela gente.

O mais do mesmo do salão do aeroporto já não me interessava. Sentei num canto com pouca luz, quieto, e pus-me a orar. Prece prosaica, de olhos abertos, mesmo: “Bom Deus, para onde ele foi, não sei. Pode me deixar aqui, mas vai com ele! Que ele se lembre sempre do amor da mãe e que não lhe falte a comunhão dos irmãos nem a bênção do Pai”. Àquela altura, o rapaz já deveria estar a bordo. Jamais saberei o seu nome, mas ele já me parecia familiar. Na minha lembrança, já não era parte da multidão que, naquele imenso caixotão de concreto, espera tediosamente enquanto ouve vozes metálicas anunciando destinos com ecos de impessoalidade.

Aquela família evangélica do aeroporto tem muito a ensinar à Igreja. Quando reduzimos alguém — seja ao título de gay, de pobre ou de insignificante –, esquecemos que o seu sentido mais abrangente não é este. Pensemos na pessoa. Qualquer pessoa deve ser alvo do nosso respeito. A dignidade humana não se atribui pela opção sexual ou condição social. Recuperemos, em algumas comunidades, a ideia de Igreja como família afetuosa, que jamais abandona os seus. Os discursos dominicais sobre amor ao próximo precisam eliminar os seus óbices de estigmas sociais — caso contrário, os observadores atentos desconfiarão da autenticidade do nosso testemunho.

FIGUEREDO FILHO, Valdemar. Abuso de poder: político, econômico, teológico e simbólico. São Paulo: Fonte Editorial, 2017. p. 15

Valdemar Figueredo
Editor do Instituto Mosaico, Pesquisador da USP (pós-doc), cientista social e pastor
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