Surto de pastores doentes por conta das condições insalubres de trabalho

Estou solidário com os motoristas de ônibus dos grandes centros urbanos. Observo que várias categorias se beneficiaram das tecnologias para o desempenho das suas tarefas. Parece que o mesmo não se pode dizer daqueles que acumularam funções: dirigem enquanto dão troco.

Mas, quais as similaridades com o labor dos pastores?

Um olho na porta da frente, outro na porta de trás. Gente fazendo sinal com os braços suspensos querendo entrar. Outros, dentro, “gritam” a exigência de descer no próximo ponto. O pastor e o motorista monitoram as respectivas mobilidades.

Ambos são condutores de coletivos e convivem com os fluxos e refluxos de pessoas. Uns sobem, outros descem. Nem sempre esses condutores são responsáveis pelos “veículos” que dirigem. Mas a população em torno, inclemente, exige bons serviços.

O motorista conduz o ônibus e faz o trabalho do funcionário que cobrava as tarifas. Contenção de custos para os empresários do setor de transportes. A tecnologia do cartão magnético aumentou os lucros. A questão é que ninguém confiaria o volante para o “cobrador”, e quem disse que o motorista tem condições de acumular funções? A Igreja não gosta de chamar o seu pastor de funcionário. Prefere entende-lo na lógica da vocação. Alguém dúvida que hoje esses seres humanos estão sobrecarregados entre cuidar de pessoas e gestão de empreendimentos eclesiásticos?

O motorista é o único dentro do ônibus que tem obrigação de estar ali. Condutor compromissado com a mobilidade alheia. Que o faça em total segurança sem jamais desviar do trajeto. Os profissionais que guiam os coletivos jamais devem surpreender os usuários. As riscas no asfalto são tão indicativas quanto trilho para os trens. Proibido sair do caminho. Vida cristã como caminho óbvio, reto e sempre para a frente.  O público pagante tem o mapa na cabeça e aí daquele dirigente que ousar arejar a viagem do grupo.

O motorista vai trabalhar com sol ou chuva. A temperatura do coletivo nada tem a ver com as suas competências. Uns sentem muito calor e esbravejam que o ar condicionado do ônibus não dá vasão. Janelas que não abrem, aparelho de ar condicionado que não gela, fogo no teto (sol) e por baixo do veículo o asfalto ferve liberando o inoportuno vapor. Panela de pressão sem válvula de escape. Os pastores suportam as mesmas condições adversas do dia a dia do seu público cativo. O agravante é que os que estão prontos para explodir elegem o único que está em banco diferente para ser objeto de suas frustrações. Tensões crescentes quando o pastor não os transporta as águas tranquilas e aos vales verdes.

Curioso que o sindicato dos rodoviários não consiga soluções para esses homens e mulheres tão explorados e solitários. Agora, nem o cobrador para auxiliar e servir como companheiro de jornada. Horas diárias de trabalho duro sem ter com quem contar. O sindicato de pastores faz carteirinhas para que o profissional da fé esteja certificado para visitar nos hospitais em horários múltiplos, eventualmente promove acampamentos para dizer aquilo que todos já sabem. Curioso que na maioria das vezes os palestrantes desses eventos são pastores que sabem o que deve ser feito, não obstante, não pastoreiam. Especialistas de obviedades. Começo a desconfiar que os sindicatos de pastores representam os empregadores e não aos empregados.

A situação já é alarmante há muito tempo. As condições desumanas de trabalho não são atenuadas com fraseados que remetem ao divino. Observo uma epidemia de pastores doentes física, espiritual e emocionalmente por conta das condições insalubres das suas atividades. Pregam sobre algo que não têm: qualidade de vida.

O agravante – diferente do motorista – é que o pastor leva para o seu local de trabalho toda a família. Segundo tendências, tal família cumpre o papel de modelo da comunidade. Filhos ouvem a queixa da Igreja em relação aos seus pais ou convivem com o adoecimento de projeções que beiram a canonização. De uma forma ou de outra o processo é de despersonalização, desumanização e cansaço.

Motoristas de ônibus e pastores evangélicos são duas categorias que não gozam de tanta simpatia da população. O filho encabula-se quando em sala de aula a dinâmica é falar dos ofícios dos pais. A esposa ou esposo precisa contar algumas dezenas para não invocar com insinuações de que seu carro novo está relacionado à exploração de ovelhas tão dóceis quanto ignorantes.

No caso de muitos homens e mulheres que estão nessa condição o ministério vira uma prisão. Estão infelizes, mas são dependentes emocional e financeiramente daquilo que a comunidade lhe atribui como recompensa. A dependência é tão grande que alguns quando “afastados” sofrem surtos de abstinência.

Percebeu que até então não falei de Deus? A razão é simples, a análise aponta para gestores de empreendimentos religiosos. E quem disse que bons pastores tem que gastar a vida nisso? A comunidade evangélica estranha o termo “mística”. Mas é exatamente a “mística” que haverá de nos salvar de nós mesmos. O modelo de pastores multitarefas que empreendem para ver o seu negócio crescer, definitivamente, leva a neuroses e não a Deus. Prefira o caminho alternativo ainda que a viagem demore mais.

Valdemar Figueredo
Editor do Instituto Mosaico, Pesquisador da USP (pós-doc), cientista social e pastor
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