Paredes de Vidro: A Vida é um Sopro

Cariocas não gostam de dias nublado, sussurrou a gaúcha. Corri pelas calçadas estreitas. Chegar primeiro dessa vez era por pura solidariedade. Vai chover, mas o que importa?

Rumo à clínica médica. Amiga ausente por alguns dias. Sustentada pela tecnologia médica. O motivo da minha pressa não era ela. A vida é a arte do encontro mesmo quando a morte ronda de soslaio.

Quando a questão é solidariedade e amparo, ninguém chega à frente do Vicente Santarém. À porta ele aguardava-me. Soube por ele que o médico logo conversaria com a família. Motivo porque ali estávamos. Fomos levados a uma simpaticíssima sala. Algo de extremo bom gosto. Jeito humanizado de receber pessoas fragilizadas. O sofá era do tipo fofão. Você senta e ele afunda. Chá, café e água. TV ligada e o controle à mão. Armários embutidos, mognos lustrados.  Contudo, nada chamou-me tanto a atenção quanto a parede de vidro.

A parte frontal da sala de convivência dava para lateral do berçário. Detalhe, a parede do berçário também era de vidro. Tudo muito delicado. Recém-nascidos expostos às primeiras expiadas. Pais e avós emudecidos. Fitinhas no pulso dando conta de uma identidade ainda misteriosa. Fleches estourando como fogos comemorativos.

O médico entrou na sala. Digo, na sala de convivência onde a família aguardava boas notícias. Muito educado e solícito. Combinava com o ambiente.

– Constatamos nos últimos exames que a nossa querida amiga teve morte cerebral.

O filho quis entender. O marido levantou hipóteses. O choro não vinha. Aquilo não fazia sentido. Era preferível prestar atenção ao termo “cerebral”, porque remetia a uma suposta “medioquês”. Mas todos tinham ouvido o outro termo indesejado.

– Orientei a equipe que observem o curso normal das coisas. Em respeito a ela e a vocês não tentaremos nenhum ato heroico. Os aparelhos serão desligados.

Já à porta, com a dura missão cumprida, deu o seu último recado:

– Não sei quanto tempo essa situação vai durar, mas tenho certeza que não haverá sofrimento por parte dela. Saibam que ela não está sentindo dor nem qualquer mal-estar!

Silêncio fundo depois da saída do médico…

Talvez a palavra do profissional para a equipe tenha nos atingido e fomos econômicos nos atos de consolo, sem gestos heroicos.

Salas acústicas. O choro da sala da notícia triste não assusta os bebês do berçário. Por sua vez, o choro da maternidade não vaza, fica lá mesmo.

Desconcertado na sala do acolhimento, desviei o olhar. Tudo vazado. Barreiras de vidro. Avistei gente miúda enrugada. Vida que segue…

A vida se pronuncia com beleza sem nenhum constrangimento.

Grossos vidros emparedando a vida. De um lado o anúncio da morte, do outro a notícia do nascimento. No meio, bem no meio, corredor curto e estreito. Entre a vida e a morte, corredor com corrimão. Passageiros generosos abraçam os pais embasbacados e com os mesmos braços, com os mesmos peitos, abraçam os viúvos e os órfãos.

E vida que segue com gingado triste e surpreendentes dádivas todas as manhãs!

Valdemar Figueredo
Editor do Instituto Mosaico, Pesquisador da USP (pós-doc), cientista social e pastor
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